A civilização da misericórdia
A civilização da misericórdia
O Papa João XXIII costumava dizer que “a misericórdia é o nome mais bonito de Deus”. Orientou os participantes do Concílio Vaticano II que “usassem a medicina da misericórdia no lugar da severidade.” Já Santa Margarida Maria de Alocoque recorreu à misericórdia do Coração de Jesus para superar os exageros do medo de Deus, do rigorismo moral e espiritual, do escrúpulo da consciência. O rei Davi encontrou na misericórdia a resposta para seus crimes, como rezamos no Salmo 50.
Em nome da misericórdia os mártires perdoaram seus juízes e algozes, os santos construíram hospitais, orfanatos, abrigos, asilos, casas de acolhimento de pobres e andarilhos. João Paulo II encontrou na misericórdia a resposta para a violência do socialismo marxista e a miséria imerecida dos povos provocada pelo capitalismo neoliberal. A misericórdia tornou-se uma proposta de projeto social: “Que o mundo confie na força da compaixão”, dizia. A misericórdia para com os moralmente perdidos e socialmente excluídos responde aos desafios morais e sociais do mundo.
Desde Paulo VI até o papa Francisco nossos pontífices apresentaram a misericórdia como resposta às fraquezas e pecados humanos, à miséria e à violência dos nossos tempos. Deus sofre a dor humana e por ser misericordioso, se comove, deixa-se tocar pela compaixão e se coloca do lado do órfão, da viúva, do pobre e do estrangeiro. Assim, a misericórdia se torna a plenitude da justiça. O êxodo do Egito para a Terra Prometida, começou com a misericórdia de Deus que viu e ouviu os clamores de seu povo.
O Papa Bento XVI ensina que a “lógica mercantil” deve ser superada pela “lógica do dom e da gratuidade”, defende a “economia da gratuidade”, fundamentada na misericórdia e na comunhão. O Deus misericordioso é o “Deus de rosto humano”. A misericórdia nos dá um coração novo e coragem para procurar o bem de todos. Assim teremos braços levantados para Deus e estendidos para os irmãos. O amor misericordioso de Deus nos sustenta no compromisso a favor da justiça.
Para o Papa Francisco a “misericórdia é a maior de todas as virtudes” (EG nº 37). Ela nos ajuda a remediar as misérias alheias. A Igreja do Evangelho da misericórdia escuta o clamor pela justiça. Comover-se diante do sofrimento alheio é a misericórdia. Nosso Papa pede que nossas paróquias e comunidades sejam “ilhas de misericórdia” no meio do mar da indiferença. Nossos confessionários não devem ser lugar de tortura, mas de experiência e encontro com Deus rico em misericórdia.
Sim, a misericórdia nos leva ao confessionário, aos hospitais, às prisões, às periferias, ao lava-pés. Nosso Papa fala da “revolução da ternura”. O seu lema é: “eleito por misericórdia”. O consumismo seja pois superado pelo “sistema da dádiva”, a violência dê lugar à compaixão. Graças à misericórdia o império do mal perde sua força, os inimigos se abraçam, os pobres são saciados, os pecadores são absolvidos. Quem acredita na misericórdia crê na recuperação do ser humano e na esperança da salvação. A misericórdia não permite que percamos a capacidade de chorar diante de tanta indiferença, tanta corrupção, tanta intolerância. Isso tudo é veneno mortal. A lei da misericórdia é “não prejudicar”, e o outro é visto como um amigo, um irmão, um filho de Deus. A misericórdia cria condições para a empatia e a comunicação interpessoal porque é expressão do amor materno, visceral, uterino. O amor incondicional, gratuito, generoso é sinônimo de misericórdia. A cultura da misericórdia possibilita a globalização da solidariedade.
Dom Orlando Brandes
Arcebispo de Aparecida
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