Dom Raymundo Damasceno Assis
Arcebispo de Aparecida-SP
Presidente da CNBB


No ano de seu cinquentenário, a Campanha da Fraternidade traz um tema complexo e de dimensões universais que desafia a todos: o tráfico humano. Colocado entre as atividades mais rentáveis no mundo, chega a movimentar cerca de 32 bilhões de dólares por ano, segundo a ONU. Como ficar indiferente a esse crime que atenta contra a vida e a dignidade dos filhos e filhas de Deus?

O papa Francisco, em discurso ao Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, no ano passado, classificou o tráfico humano como uma vergonha. “Insisto que o ‘tráfico de pessoas’ é uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades, que se dizem civilizadas! Exploradores e clientes de todos os níveis deveriam fazer um sério exame de consciência  diante de si mesmos e perante Deus!”, disse o papa.

Realizada durante a Quaresma, tempo especial de conversão e de busca de santidade, a Campanha da Fraternidade é um convite a que toda sociedade brasileira também faça esse exame de consciência e veja como se coloca diante desse crime. Este propósito vem expresso em seu objetivo geral: “Identificar as práticas do tráfico humano em suas várias formas e denunciá-lo como violação da dignidade e da liberdade humana, mobilizando cristãos e a sociedade brasileira para erradicar esse mal, com vista ao resgate da vida dos filhos e filhas de Deus”.

Há pelo menos quatro modalidades de tráfico de pessoas. A primeira é a exploração sexual, que atinge principalmente as mulheres, inclusive crianças e adolescentes. Os aliciadores utilizam-se, dentre outras coisas, da pornografia, do turismo e da internet para alcançar seus objetivos. Fazem do corpo uma mercadoria que se usa para fins lucrativos ferindo de morte a dignidade da pessoa humana, imagem e semelhança de Deus.

A segunda é a exploração do trabalho escravo cujas vítimas são, em sua maioria, homens. Dados da Comissão Pastoral da Terra apontam que entre 2003 e 2012 foram registrados 62.802 casos de trabalho escravo ou análogo a escravo. Nesses casos, o trabalho se torna uma maldição que desfigura a pessoa humana e avilta seus direitos de liberdade e dignidade.

A terceira modalidade do tráfico humano é para a extração de órgãos para transplantes. No Brasil, ganhou repercussão nacional a chamada “Operação Bisturi”, deflagrada em 2003 pela Polícia Federal. Em Recife, as vítimas vendiam um de seus rins e iam a Durban, na África do Sul, para se submeter à cirurgia de retirada do órgão. Um atentado contra os elementares princípios da ética sobre os quais se assenta a vida humana.

É importante frisar que a Campanha da Fraternidade não trata da questão de doação de órgãos sobre a qual a Igreja tem posição favorável clara. Vemos isso, por exemplo, na encíclica Evangelium Vitae: “merece particular apreço a doação de órgãos feita segundo normas eticamente aceitáveis para oferecer possibilidades de saúde e de vida a doentes, por vezes já sem esperança” (n. 86). A Campanha vem condenar os que usam da prática ilegal e criminosa de compra e venda de órgãos, aproveitando-se da vulnerabilidade social e econômica das vítimas e aliciando-as com a promessa de riqueza fácil.

Há, ainda, o tráfico de crianças e adolescentes seja para fins de adoção ilegal, seja para exploração no trabalho. Dados de entidades que trabalham na defesa dos direitos da criança e do adolescente mostram que na década de 1980, cerca de 20 mil crianças brasileiras foram enviadas ao exterior para adoção.

Esta ultrajante realidade não nos permite ficar indiferentes e nos cobra uma atitude. A Igreja tem dado sua contribuição através da Pastoral da Mobilidade Humana, Pastoral da Mulher Marginalizada e Grupo de Trabalho de Combate ao Trabalho Escravo. Além disso, Congregações Religiosas e várias pastorais da Igreja têm dado assistência a muitas vítimas do tráfico humano, ajudando-as na sua volta ao convívio social. Mas sempre podemos fazer algo mais.

O Estado também precisa intensificar suas ações para a erradicação dessa vergonha que é o tráfico humano. Urge estruturar o sistema de atendimento às vítimas desse crime, bem como sua reintegração social e a diminuição de sua vulnerabilidade.

A esperança cristã nos faz crer que nenhum mal tem a palavra final. A ressurreição de Cristo, para a qual nos leva a Quaresma, nos livre da “indiferença globalizada” e seja nossa força na luta contra o mal do tráfico humano.